HOME OFFICE EM TEMPO INTEGRAL NO SETOR PÚBLICO

Será o passo final para o desmonte e sucateamento dos serviços públicos?

Com a pandemia da COVID 19, muitas empresas e órgãos do setor público foram obrigados a entrar em regime de home office (teletrabalho), em tempo integral, por medidas de segurança. Enquanto a pandemia não acabar, é prudente manter o regime de teletrabalho em tempo integral para evitar o aumento de contágio entre os funcionários.

Mas hoje vamos discutir especificamente a possibilidade de alguns órgãos do setor público adotarem a opção de teletrabalho, em tempo integral, após a pandemia.

Origens do trabalho remoto (teletrabalho ou home office)

O primeiro exemplo prático de teletrabalho pode ser visto ainda no século XIX, em 1857, nos Estados Unidos. Quando o empresário Edgard Thompson passou a utilizar o telégrafo para gerenciar as equipes de trabalho que se encontravam distantes da sede da Pennsylvania Railroad, companhia ferroviária americana.

O pai do termo teletrabalho foi o americano Jack Nilles que, com a crise do petróleo na década de 1970, visando reduzir custos, criou a expressão telecommuting em seus estudos sobre o tema. Segundo ele, o termo se refere a qualquer forma de substituição do deslocamento físico do trabalhador para a empresa por meio de uso da tecnologia da informação (telefones e computadores). A ideia era enviar o trabalho ao trabalhador e não o contrário[1]. Segundo Nilles, além da redução de custos, a poluição ambiental e a diminuição do tráfico urbano seriam outras vantagens do novo sistema.

Com a expansão da Internet na década de 90, o tema passou a ser mais debatido e ao longo das décadas seguintes (com o advento da quarta revolução industrial[2]), os avanços tecnológicos permitiram que alguns trabalhadores passassem a desempenhar suas funções sem precisar estar presente fisicamente no escritório. 

No Brasil, o tema passou a fazer parte da legislação brasileira em 2011 sendo reconhecido formalmente em 2017 (Projeto de Lei nº 6.787/2016), fazendo parte da Reforma Trabalhista[3]

 

Vantagens e Desvantagens

O sistema de trabalho remoto tem suas vantagens. O funcionário que mora longe do escritório (ainda mais em uma cidade grande com transporte público precário) ganha em termos de qualidade de vida. Mães com filhos pequenos podem disponibilizar mais tempo para cuidar deles com flexibilidade de horário. As pessoas de um modo geral gastam menos tempo se locomovendo de um lugar ao outro o que, em tese, permite que elas cuidem um pouco mais da família ou delas mesmas. A concentração para desempenhar determinadas tarefas, às vezes, é maior dentro de casa aumentando a produtividade do funcionário (dependendo das condições de moradia do trabalhador). Algumas pessoas acreditam que passaram a se alimentar melhor e a cuidar mais de sua saúde de um modo geral com a adoção do home office. Para algumas pessoas houve redução dos gastos com alimentação e transporte. Além disso, ficar em um ambiente fechado com ar-condicionado aumenta a chance de a pessoa adoecer. É importante ressaltar que a percepção sobre o home office varia de acordo com a classe econômica, idade e sexo e condições de vida do trabalhador[4]. Aqui, procuramos elencar algumas vantagens do home office segundo a visão de alguns trabalhadores.

No entanto, o sistema também tem suas desvantagens. No caso das instituições públicas, o servidor não recebeu ajuda de custo com conta de luz e internet e nem tampouco computador e mobília adequada. Há relatos de funcionários que tiveram que comprar computador e cadeira, além de contratar um pacote de internet mais rápido durante a pandemia para poder desempenhar suas funções dentro de casa.

Alegando aumentar a eficiência dos serviços públicos e modernizar a gestão de pessoas, o governo federal vai lançar um programa em setembro de 2021 com o objetivo de instituir o teletrabalho em alguns órgãos públicos. O objetivo do governo federal é reduzir custos (em conformidade com a política neoliberal), aumentar a produtividade e se basear na entrega de resultados e não mais nas horas trabalhadas (o problema é que as regras dessa mudança ainda não estão muito claras).

Segundo o governo federal, “a implantação do programa de gestão é facultativa aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal e deve ocorrer em função da conveniência e do interesse do serviço”[5]. Além disso, não pode haver prejuízo de atendimento ao público. No caso, seriam atividades que exigem um maior esforço individual e que não precisam de tanta interação com outros agentes públicos.

O servidor que aderir ao plano deverá cumprir um plano de trabalho. Entre as obrigações constam: estar disponível para atender chamadas telefônicas, responder com frequência os e-mails institucionais, comparecer ao órgão quando convocado e arcar com todos os custos referentes à internet, conta de luz e telefone. Em relação aos equipamentos, fica à critério do órgão distribuir os computadores disponíveis (ou seja, provavelmente não haverá computador para todos). Ao que parece, o órgão não tem reponsabilidade nem obrigação de dar algum tipo de suporte para o trabalhador em relação à estrutura física do home office.

Além disso, ele poderá escolher entre o sistema híbrido (presencial e remoto) ou remoto em tempo integral. Os custos do trabalho remoto serão exclusivamente do servidor.

Pelas questões já mencionadas, a ideia de instituir um sistema híbrido (dependendo da natureza do trabalho) em alguns órgãos pode trazer benefícios para os servidores sem causar danos à qualidade do serviço público. A pergunta que fica é: quais são os riscos no longo prazo para a instituição e para os servidores públicos que adotarem o trabalho remoto em tempo integral?

Ao contrário da iniciativa privada, o serviço público tem como finalidade atender às demandas sociais[6] e não o lucro. Portanto, a ideia de que o governo deve cortar gastos ao máximo pode ser perigosa. Aliás, já falamos aqui[7] que a política de austeridade fiscal tem levado a sucessivos cortes no orçamento do governo enquanto boa parte dos recursos da União vem sendo destinados ao pagamento da dívida pública. Com isso, a política de sucateamento dos serviços públicos vem tendo êxito.

 

Quais seriam os riscos para os órgãos públicos caso adotem o sistema de teletrabalho em tempo integral?

A chance de uma forte mobilização sindical diminui e com isso, as perdas salariais serão maiores ainda. O risco de perda de consciência de classe é muito alto.

É comum a generalização por parte da sociedade de que o funcionalismo público não trabalha direito, não é produtivo e ainda ganha acima da média. Imagina os ataques no longo prazo caso boa parte dos funcionários adote o trabalho remoto em tempo integral?

Outro problema é a descentralização em excesso das equipes. O contato pessoal é importante para enriquecer as trocas de informações, a colaboração entre os funcionários, o aprendizado, além do estímulo. Tudo isso pode ficar comprometido no longo prazo. Pode-se alegar que alguns servidores, na forma presencial, já estão desestimulados. Ok…acontece, mas a pergunta que fica é: será que isso não vai se generalizar para boa parte dos servidores no formato remoto?

Outra questão é o excesso de centralização na tomada de decisões dos gerentes. A estrutura de poder deve ficar muito rígida, sem muita mudança de cargos, ascensão profissional ou troca de área. Com isso, é de se esperar uma perda de interesse por parte de alguns funcionários no longo prazo. Quem garante que alguns não vão começar a pensar mais nos seus projetos pessoais? Para melhorar a qualidade dos serviços públicos, é importante estimular os funcionários e investir na estrutura do órgão. Manter a cultura de aprendizado, a troca de informações e colaboração entre a equipe, além da valorização salarial. Aliás, até as conversas de corredor e o cafezinho colaboram para a troca de informações entre os servidores.

Embora a tecnologia tenha avançado muito, sabemos que aqui no Brasil a qualidade da internet nem sempre é a ideal dentro de casa. É comum problemas de conexão durante algumas reuniões online afetando a dinâmica das reuniões.

 

CONCLUSÃO

A pandemia da COVID 19 acabou acelerando o projeto de teletrabalho no setor público. Discutir um sistema de trabalho híbrido no setor público (dependendo da natureza do órgão) é plausível. Com a instituição do teletrabalho, em 2020, a opção de trabalhar de casa alguns dias da semana não pareceu afetar a qualidade do trabalho e ainda trouxe alguns benefícios para o servidor. No entanto, é importante lembrar que o servidor arcou com os custos financeiros do home office.

Além disso, a possibilidade de implementar o trabalho remoto em tempo integral parece fazer parte do projeto de sucateamento do setor público na medida em que as chances de uma mobilização sindical diminuem. Com isso, os salários vão ficando defasados (levando os servidores a procurarem outros empregos para complementar a renda) e o servidor vai perdendo o vínculo com a instituição e os colegas. O processo de aprendizado e as trocas de ideias no longo prazo podem ficar comprometidos e a centralização e a rigidez na hierarquia dos serviços públicos podem ficar cada vez mais engessadas. Tudo isso, no longo prazo, deve afetar a qualidade dos serviços públicos.

 

 

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Gildercia Silva Guedes de. Teletrabalho: evolução, desenvolvimento e sua identificação dentro da empresa de call center. 2014. 30f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2014.

FINCATO, Denise. Bases histórico-normativas e perspectivas  do teletrabalho no Brasil pós-pandemia. Revista Ibérica do Direito | ISSN 2184-7487 Vol. 1 | Número 2 | Jul/Dez | 2020

https://www.bbc.com/portuguese/geral-56794007

https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/governo-federal-define-novas-regras-para-o-teletrabalho

SILVEIRA, M. SEOANE, Y. GOMBAR, Teletrabalho na sociedade pós-moderna. Revista da Faculdade de Direito. UFEPEL

[1] SILVEIRA, M. SEOANE, Y. GOMBAR, Teletrabalho na sociedade pós-moderna. Revista da Faculdade de Direito. UFEPEL

[2] Revolução Digital. Ver Klaus Schwab: A Quarta Revolução Industrial.

[3] FINCATO, Denise. Bases histórico-normativas e perspectivas do teletrabalho no Brasil pós-pandemia. Revista Ibérica do Direito | ISSN 2184-7487 Vol. 1 | Número 2 | Jul/Dez | 2020

[4] https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-56564515

[5]https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/governo-federal-define-novas-regras-para-o-teletrabalho

[6] Ver texto sobre a Reforma Administrativa

[7] Ver texto sobre a UFRJ

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Tassia Gazé Holguin é economista com mestrado em saúde coletiva pela UFRJ e doutorado em economia pela UFRJ.
Atualmente, trabalha na coordenação das Contas Nacionais no IBGE, sendo uma das responsáveis pela Conta Satélite de Saúde.
Tem experiência na área de economia da saúde.