POR QUE O BRASIL, REFERÊNCIA EM VACINAÇÃO, SEGUE NUM RITMO TÃO LENTO?

Manifestação de 29 de maio de 2021

No dia 29 de maio milhares de manifestantes em todo o Brasil foram às ruas protestar contra o governo do presidente Jair Bolsonaro, a favor do aumento do auxílio emergencial (hoje só paga R$ 150,00 sendo que em 2020 chegou a R$600,00) e pedindo aceleração da campanha de vacinação contra a COVID 19.

Apesar disso houve o anúncio[1] de que a Copa América, torneio de futebol do continente sul-americano, que seria inicialmente na Colômbia e Argentina, foi transferida para o Brasil. Os países-sede originais suspenderam sua obrigação com o torneio por motivos de manifestação e pandemia. Equador e Venezuela enviaram proposta oficial para sediar os jogos, porém o Brasil foi escolhido por ter sediado a última Copa América em 2019 e por ter estádios ociosos (Arena Pantanal, Brasília, entre outros). Esse pedido o presidente respondeu prontamente, dando sinal positivo, o que causou mais um motivo de revolta na população.

Pode parecer estranho um protesto no meio da pandemia, mas quando a crise econômica e social parece se agravar a cada dia que passa junto ao descontrole da pandemia da COVID 19, é compreensível que haja protestos (com o uso de máscara e álcool gel) em todo o país (lembrando que também houve protestos recentes na Colômbia, no Chile e nos Estados Unidos).

Até o momento, o Brasil tem mais de 460 mil mortes decorrentes da COVID 19, ocupando o 2º lugar em número de mortes acumuladas. Na comparação de mortes por milhão de habitantes, o Brasil ocupa o 5º lugar (quando comparado com os países com mais de 5 milhões de habitantes). Esse dado serve para comparar o número de mortes de um país em relação ao número total de habitantes (Dados do Worldometers).

Histórico de vacinação no Brasil e Plano Nacional de Imunização

O Brasil é conhecido mundialmente pelo sucesso do Plano Nacional de Imunização (PNI)[2] criado em 1973. Desde então vacinas contra doenças como sarampo, tuberculose, difteria, tétano, coqueluche e pólio, além da manutenção da situação de erradicação da varíola (no mesmo ano o país recebeu certificado internacional de erradicação da doença pela OMS) passaram a ser oferecidas para toda a população.

Estima-se que graças ao PNI (além do tratamento da água e do esgoto e da alimentação) a mortalidade infantil conseguiu ser reduzida drasticamente. Entre 1974 e 2014, o número de mortes de crianças com menos de 5 anos caiu 90%[3]. Ao longo do tempo, doenças como poliomielite, rubéola congênita e o tétano neonatal foram erradicadas.

Com a criação do SUS em 1988, as campanhas de vacinação conseguiram um alcance ainda maior chegando a todos os municípios do país. O PNI conta com uma excelente rede de infraestrutura, com postos de saúde e cadeias de frio (tecnologia de armazenamento e transporte para conservar as vacinas na temperatura adequada).

A Central Nacional de Armazenamento e Distribuição de Insumos (CENADI), localizada no Rio de Janeiro, até 2018 era a responsável pelo armazenamento e distribuição das vacinas para todas as unidades de saúde do país (vamos falar dela adiante). Hoje o Brasil conta com mais de 36 mil salas de vacinação nas unidades básicas de saúde (UBS).

No entanto, nem tudo são flores. Desde 2014, o Brasil vem assistindo a uma queda da vacinação no país. Doenças que antes estavam controladas, como o sarampo e a coqueluche, começaram a aparecer. Em 2020, foram confirmados 8.419 casos de sarampo no país com o estado do Pará concentrando o maior número de casos[4]. Desde 2017, a primeira e a segunda dose do tríplice viral (que protege contra o sarampo, caxumba e rubéola) não atingiram o nível mínimo de 95% de cobertura. Para a população ficar protegida de uma doença, a campanha de vacinação precisa atingir um mínimo de cobertura populacional. Lembrando: a vacinação é um pacto coletivo e não uma decisão individual.

Embora o movimento anti-vacina sempre tenha existido (lembra da Revolta da Vacina, de 1904?), as causas não podem ser atribuídas somente a isso. Quando uma doença começa a ser erradicada, é normal que a população comece a pensar que não existe necessidade de tomar sua vacina. Por isso é importante investir na propaganda, as famosas campanhas de vacinação que sempre contaram com a participação do famoso Zé GOTINHA.

No entanto, com os sucessivos cortes de gastos na área da saúde (em decorrência das políticas de austeridade fiscal), as campanhas de vacinação estão diminuindo e, sem propaganda, não tem vacinação em massa. Em 2018, o ministro da saúde Ricardo Barros decidiu fechar a CENADI e contratou uma empresa privada em São Paulo para tomar conta da logística de armazenamento e distribuição. Segundo reportagem da Folha de São Paulo, funcionários responsáveis por receber vacinas nos demais estados relataram constantes dificuldades na logística desde a privatização da central.

Vacinação contra a COVID 19 no Brasil

Em 2020, o governo federal recebeu várias ofertas de vacinas por parte dos fabricantes e ignorou boa parte delas[5]. O Instituto Butantan enviou três ofícios para o Ministério da Saúde, oferecendo a vacina produzida em parceira com a farmacêutica chinesa Sinovac, a CORONAVAC.

A farmacêutica Pfizer chegou a oferecer 70 milhões de doses para o Brasil com a promessa de entrega das primeiras doses para dezembro de 2020 (US$ 10,00 cada dose[6]) A ideia era entregar 45 milhões de doses até março de 2021 e fazer o Brasil de vitrine para a sua vacina[7].

O ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello alega que o preço da dose da vacina PFIZER era muito alto e o contrato da CORONAVAC e ASTRAZENECA não previam transferência de tecnologia. Fica o questionamento: esses argumentos são válidos quando se tem uma pandemia que já matou mais de 450 mil pessoas e abalou a já debilitada economia do país? Quantas mortes teriam sido evitadas se o governo não tivesse ignorado essas ofertas em 2020??

Em meados de 2020, a FIOCRUZ anunciou que havia fechado um acordo com a biofarmacêutica AstraZeneca para compra de lotes e transferência de tecnologia da vacina para Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford[8]. Durante boa parte de 2020, o presidente Bolsonaro se envolveu numa discussão política com o governador de São Paulo em relação à vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan. Foram vários comentários sobre a qualidade, efetividade da vacina e ameaças de sabotagem (além dos insultos ao governo chinês). A ANVISA aprovou o uso emergencial da vacina em janeiro de 2021. Com isso, o Ministério da Saúde firmou acordos com o Instituto Butantan para adquirir doses do imunizante.

Em janeiro de 2021, o Ministério da Saúde iniciou a campanha de vacinação contra a COVID 19 aplicando doses da CORONAVAC e posteriormente da AstraZeneca. Como não há oferta de vacina suficiente para toda a população, o ministério da Saúde decidiu priorizar os grupos prioritários que somam um total de 78,4 milhões de pessoas e incluem profissionais de saúde, idosos acima de 60 anos, pessoas com comorbidades, com deficiências permanente, população de rua, pessoas privadas de liberdade, profissionais de educação entre outros[9].

Em março de 2021, o Ministério da Saúde anunciou acordos com as farmacêuticas Pfizer (ignorada algumas vezes em 2020) e Janssen. Nesse meio tempo, houve atraso no envio de insumos proveniente da China (usados na Coronavac e na Astrazeneca) atrapalhando ainda mais o ritmo da vacinação. A questão da importação dos insumos evidencia outro problema do país: a falta de investimento em política industrial. No caso, é preciso investir mais em produção de imunobiológicos (mas isso é tema para outro texto).

Até o final de maio, 41% dos idosos acima de 80 anos não tinham tomado a segunda dose da vacina. Em relação aos idosos entre 70 e 79 anos, esse percentual era de 37%. No caso dos profissionais de saúde, 33% ainda não foram imunizados com a segunda dose. Estima-se que o grupo de brasileiros com comorbidades seja de 31 milhões de pessoas. Apenas 13%, com menos de 60 anos, cerca de 4 milhões, receberam a primeira dose (Werneck et al, 2021). Há também a questão das pessoas que estão usando atestado falso para poderem se vacinar no grupo prioritário sem terem esse direito[10].

Além disso, muitas pessoas que tomaram a primeira dose da CORONAVAC não receberam a segunda dose (mais de 3,8 milhões – considerando o período de intervalo de 28 dias) enquanto mais de 560 mil pessoas que já tomaram a primeira dose da AstraZeneca não receberam a segunda dose (considerando o intervalo de 3 meses).

Especialistas afirmam que a campanha de vacinação deve ter uma cobertura acima de 90% nos grupos prioritários, considerando a eficácia das vacinas disponíveis até maio de 2021 (50% a 70% para prevenção de formas clínicas e graves da doença). Os estudos mostraram que nem todos os indivíduos, quando vacinados, vão deixar de manifestar a doença ou transmitir o vírus. Portanto, é preciso acelerar o ritmo da vacinação para reduzir as taxas de transmissão de forma eficaz e evitar o colapso no sistema de saúde. As vacinas disponíveis não podem ser vistas apenas como proteção individual, mas sim, como proteção coletiva. A vacinação contra o COVID 19 também não é passaporte para viajar para a Europa ou aglomerar em festas. Infelizmente, parece que ainda teremos um longo caminho pela frente até a situação melhorar um pouco.

CURIOSIDADES

A palavra vacina deriva do termo Variolae vaccinae, nome científico dado à varíola bovina. A palavra foi usada pela primeira vez em 1798 pelo médico inglês Edward Jenner. Ele observou que pessoas que ordenavam as vacas e haviam contraído a doença em sua forma animal (cowpox) não desenvolviam a varíola. Jenner extraiu o pus da mão de uma ordenhadora que havia contraído a cowpox. Então, inoculou esse pus em um menino saudável que acabou contraindo a doença em sua forma branda, curando-se depois.

Em 1904 ocorreu a famosa “Revolta da vacina”. O presidente Rodrigues Alves tornou a vacinação contra a varíola obrigatória (ideia do médico sanitarista Oswaldo Cruz). Nessa época a cidade do Rio de Janeiro sofria com as epidemias de varíola, febre amarela e peste bubônica. A oposição usou a Lei da Vacina como pretexto para fomentar a rebelião contra o governo. Na época notícias (seriam fake news?) de que agentes de saúde entrariam nos lares das famílias para desinfetar e limpar os ambientes além de “tocar” nas mulheres da casa (esposas e filhas). O argumento era de que a lei feria a liberdade de escolha das pessoas e da propriedade privada.

Em 1977 as vacinas contra tuberculose, poliomielite, sarampo, difteria, tétano e coqueluche passaram a ser obrigatórias para os bebês com menos de 1 ano. Todas são oferecidas gratuitamente pelo SUS.

O Zé Gotinha foi criado em 1986 como símbolo da luta contra a poliomielite.

Em 2018, a vacina contra o HPV passou a ser aplicada em meninos entre 11 e 15 anos.

Foi no século XX que a vacina passou a ser de fato uma prática de prevenção e controle de doenças na população.

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REFERÊNCIAS

https://atlas.fgv.br/verbetes/revolta-da-vacina#:~:text=Revolta%20tamb%C3%A9m%20conhecida%20como%20Quebra,da%20vacina%C3%A7%C3%A3o%20contra%20a%20var%C3%ADola.

https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2021/05/28/vacinas-teriam-salvo-95-mil-vidas-se-governo-bolsonaro-nao-tivesse-ignorado-ofertas-calcula-pesquisador.ghtm

https://globoesporte.globo.com/futebol/copa-america/noticia/copa-america-em-reviravolta-conmebol-decide-sediar-torneio-no-brasil.ghtml

https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/na-sombra-da-covid-19-sarampo-avanca-provoca-mortes-no-brasil-por-falta-de-vacinacao-24844745

https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-fiocruz-firmara-acordo-para-produzir-vacina-da-universidade-de-oxford

https://redetb.org.br/referencia-mundial-conheca-a-historia-do-pni-o-programa-de-imunizacao-brasileiro/

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55722632

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-saude-fecha-acordo-com-pfizer-e-janssen-para-mais-138-milhoes-de-doses-de-vacinas-covid-19

https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/marco/23/plano-nacional-de-vacinacao-covid-19-de-2021

https://www.worldometers.info/coronavirus/

https://www.worldometers.info/coronavirus/#countries

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/brasil-fechou-central-que-distribuia-vacinas-e-privatizou-servico-em-2018.shtml

Ministério da Saúde muda critério da vacinação, por ordem decrescente de idade, e antecipa novos grupos sem o país atingir coberturas mínimas. Autores: Guilherme Loureiro Werneck, Instituto de Medicina Social da UERJ e Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ; Ligia Bahia, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ; Jéssica Pronestino de Lima Moreira, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ; Mário Scheffer, Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. 28 de maio de 2021.

[1] https://globoesporte.globo.com/futebol/copa-america/noticia/copa-america-em-reviravolta-conmebol-decide-sediar-torneio-no-brasil.ghtml

[2] https://redetb.org.br/referencia-mundial-conheca-a-historia-do-pni-o-programa-de-imunizacao-brasileiro/

[3] https://gizmodo.uol.com.br/como-o-brasil-se-tornou-referencia-em-vacinacao-e-por-que-este-legado-esta-indo-para-o-lixo/

[4] https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/na-sombra-da-covid-19-sarampo-avanca-provoca-mortes-no-brasil-por-falta-de-vacinacao-24844745

[5]  https://piaui.folha.uol.com.br/bolsonaro-recusou-tres-ofertas-de-vacina/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/06/bolsonaro-recusou-vacina-a-50-do-valor-pago-por-eua-e-uniao-europeia.shtml

[7] https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2021/05/28/vacinas-teriam-salvo-95-mil-vidas-se-governo-bolsonaro-nao-tivesse-ignorado-ofertas-calcula-pesquisador.ghtml

[8] https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-fiocruz-firmara-acordo-para-produzir-vacina-da-universidade-de-oxford

[9] Ver https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/marco/23/plano-nacional-de-vacinacao-covid-19-de-2021

[10] https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2021/05/28/relatos-de-atestados-falsos-para-furar-fila-da-vacina-proliferam-conselhos-de-medicina-nao-registram-nem-uma-denuncia-sequer-no-pais.ghtml

 

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Tassia Gazé Holguin é economista com mestrado em saúde coletiva pela UFRJ e doutorado em economia pela UFRJ.
Atualmente, trabalha na coordenação das Contas Nacionais no IBGE, sendo uma das responsáveis pela Conta Satélite de Saúde.
Tem experiência na área de economia da saúde.