“COMANDANTE, A OPERAÇÃO TÁ ERRADA, COMANDANTE!”*

Interrompemos nossa programação normal para publicar sobre (outro) massacre ocorrido ontem no Rio de Janeiro.

*Fala do Capitão Nascimento no filme Tropa de Elite. Pra quem nunca viu o filme, sugiro que vejam – tem na Netflix. **Apesar do sobrenome em comum, não tenho qualquer relação com o Capitão Roberto Nascimento, personagem real usado como inspiração para o filme. ***O Cap. Nascimento verdadeiro é a favor da legalização da maconha por reconhecer que a guerra contra as drogas não tem efeito.

Os 5 brasileiros que já publicaram no El Periférico, autores fixos ou convidados, moram no Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro é mundialmente conhecido como a Cidade Maravilhosa, “abençoado por Deus e bonito por Natureza”, já dizia Jorge Ben Jor. É também a cidade que tem um aplicativo chamado “Onde Tem Tiroteio” para avisar a população onde tá rolando tiroteio e ajudar os moradores a escaparem de uma bala perdida. Te desafio a encontrar um carioca que nunca tenha estado no meio de um arrastão (assalto coletivo) ou que nunca tenha ouvido a um tiroteio, mesmo que seja do conforto de seu “apartamentinho da zona sul”.

Ontem, o Rio de Janeiro, que já foi notícia internacional pela final da Copa do Mundo de 1950 e de 2014, pelas Olimpíadas de 2016, pelo Maior Carnaval da Terra, pela Garota de Ipanema, ganhou as manchetes internacionais de jornais renomados como o Le Monde, da França, Washington Post, dos EUA, El País, da Espanha, Al Jazeera, do Catar, e o britânico The Guardian, dentre outros, pela verdadeira chacina ocorrida numa favela da cidade.

Ontem, dia 06 de maio de 2021, uma operação policial na favela do Jacarezinho resultou em 25 mortes. VINTE E CINCO. Foi a operação mais letal da história do Rio de Janeiro. Como se já não bastasse a pandemia que ontem atingiu 15 milhões de casos no Brasil e 333 mortes diárias no Rio. A favela do Jacarezinho fica no Subúrbio do Rio, a 6km do também mundialmente famoso Estádio do Maracanã e tem 40 mil moradores. Mais que muitas cidades brasileiras.

Dos 25 mortos, um era policial. Além disso, houve 5 pessoas feridas, três policiais e dois passageiros do metrô. Simplesmente pessoas que estavam no metrô indo ao trabalho e acabaram sendo atingidos por uma bala perdida.

A defensora pública que está tratando do caso, disse que “uma operação com 25 mortes não pode ser considerada eficaz”.[1] Não tenho conhecimento técnico para opinar sobre a operação policial, que foi planejada por 10 meses. De acordo com a polícia, a operação tinha como objetivo salvar as crianças que são aliciadas ao tráfico. O que significa isso? Crianças que são atraídas pelos traficantes da região, com promessas de presentes: tênis caros, celulares caros… Começam a “carreira no tráfico” ainda jovens, como aviãozinho e fogueteiros. Quê? Traduzo: começam levando e trazendo droga do topo da favela para o asfalto (aviãozinho) e ficam no topo da favela observando a movimentação para avisar quando tem policial subindo (fogueteiro). Não sei dizer se depois de 9h de tiroteio intenso e muitas mortes, algumas presenciadas por crianças, se elas estão de fato salvas do tráfico, ou com medo da polícia…

Mas tenho conhecimento de sobra de Economia para ver vários erros deste contexto. O mais importante: a ausência do Estado. Por que será que as crianças achariam vantajoso entrar para o tráfico? Uma atividade ilegal e perigosa? Será porque elas não veem futuro nos estudos? Será porque vivem em condições precárias com pouco acesso à educação? Será porque têm que ver seus pais saírem todo dia para trabalhar em meio a uma pandemia porque o Estado não provém um auxílio financeiro que permita às pessoas ficarem em casa sem ter de morrer de fome?

Essa ausência de Estado também se percebe quando a saúde pública está colapsada. Quando os hospitais de campanha (hospitais temporários montados para uma atividade específica, no caso, a pandemia da COVID-19) prometido pelo governo não foram abertos. Quando não há vacina para muitas das profissões essenciais durante a pandemia que as pessoas com baixa escolaridade exercem, como caixas de supermercado, motoristas de ônibus, entregadores de aplicativos.

A ausência do Estado também se percebe na falta de política pública de moradia. Por que as pessoas escolheriam morar na favela, uma região com pouca ou nenhuma infraestrutura? Em que, muitas vezes, não há água encanada e saneamento, asfalto, rede elétrica bem organizada, nem acesso a serviços básicos. Será porque não têm dinheiro para adquirir uma moradia com um mínimo de condições para uma família? Ou preferem de fato viver em casas pequenas, em condições muitas vezes aglomeradas pois moram muitas pessoas num mesmo espaço e muitas casas juntas, com pequenas ruelas que formam um verdadeiro labirinto dentro da favela.

A ausência do Estado se percebe na falta de transporte público decente na região. Seja por questão de segurança ou de infra urbana, muitas vezes os moradores da favela têm de andar muito até chegar a um ponto de transporte coletivo. Ou então, se contentarem com os transportes irregulares oferecidos pela própria população, como as vans e os moto-taxis. A ausência do Estado se percebe na falta de creches para que as mães possam deixar seus filhos e irem trabalhar com segurança e sem preocupações. A ausência do Estado se percebe pela falta de investimento social. Há atividades culturais na favela? Aulas de arte, música, esportes?

Há muitos projetos sociais em atuação em diferentes favelas do Rio, como a Taça das Favelas[2] e AfroReggae[3], que começou na comunidade de Vigário Geral em 1993, também logo após uma chacina. É comprovado que essas ações sociais, sim, tiram as crianças e adolescentes do crime, porque dão a elas outra visão de futuro, de oportunidade, de esperança. Diversos jogadores de futebol têm origem humilde e, após ganharam fama e dinheiro, voltam às suas origens com projetos sociais. Mas está correto ficarmos dependente apenas da benevolência alheia para isso? Ou isso seria papel do Estado, que, de acordo com nossa Constituição, deveria promover o Bem-estar de todos, sem discriminação de cor, sexo, religião, etc.

Verdade seja dita: muitas vezes o Estado se fez presente nas favelas. Algumas ações nas décadas de 1960 e 1980, tinham como objetivo construir moradias populares em bairros afastados para a população mais pobre (assim nasceu a Cidade de Deus, por exemplo). Na década de 1990, o projeto Favela-Bairro era um programa de Urbanização e Assentamentos populares promovendo infraestrutura e habitação, além de serviços e políticas sociais.

Outra ação bastante famosa foram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) iniciada em 2008 que contava com duas etapas: a primeira, a ocupação de territórios dominados pelo tráfico, normalmente avisadas com antecedência para que os bandidos fugissem ou se entregassem, sem que houvesse derramamento e sangue; e a segunda com a ocupação da região com policiais para interagir com a população na forma de programas de desenvolvimento sociais. Embora bem-sucedida no começo, o alcance dessa política foi de curto prazo. Como ponto positivo, houve a redução da violência, em especial queda de 50% dos homicídios em 5 anos. No entanto, como ponto negativo, especialistas em Segurança Pública apontam que os programas sociais e a interação dos policiais com a população não foram feitas de forma coordenada e duradoura. A pacificação era positiva para a favela, pois além da paz e infraestrutura, trazia também segurança aos comerciantes. Algumas favelas da Zona Sul começaram a receber moradores do asfalto em hostels, bares, shows, bailes funk, etc. Isso gera renda e emprego, ou seja, uma oportunidade fora do crime. A UPP mais famosa foi a da favela Dona Marta onde, inclusive, a Madonna esteve.

No entanto, as favelas sofrem com o processo de gentrificação, ou seja, a mudança constante das políticas que não permitem uma continuidade para se obter resultados de longo prazo. E, quando permitem, acabam sobre valorizando a região com especulação imobiliária que acaba expulsando os moradores originais para outras regiões mais pobres e/ou mais afastadas. Essa política acaba gerando um acúmulo de problemas, pois essas pessoas agora vão a regiões mais longe do centro, onde há menos escolas, hospitais, postos de trabalho, infraestrutura urbana e transportes de qualidade.

A maioria das pessoas que moram nessas comunidades são trabalhadores honestos, pessoas de baixa renda, que moram ali muito provavelmente por falta de opção. Será que é certo expor inocentes dessa forma? Além dos efeitos colaterais da operação, como interromper uma linha do transporte público por conta do tiroteio; uma noiva que quase perdeu o casamento porque não conseguiu sair de casa a tempo; ou uma grávida, com cesárea marcada, que também teve dificuldades de sair. E as crianças que morrem por balas perdidas? Estão mais seguras com essas operações para “salvá-las do aliciamento do tráfico”? O morro não é feito apenas de bandidos. “O morro foi feito de samba.. de samba pra gente sambar…” – Alcione

Termino o texto te fazendo outro desafio: Será que uma operação desse porte seria feita num bairro de classe média ou alta da cidade? Ou ela é restrita apenas a bairros de gente preta e pobre? Curiosamente também são essas pessoas que mais morrem nas ações policiais. Um dado de 2019, mostra que 78% das pessoas mortas por intervenção policial são pretos e pardos. A maioria homens entre 14 e 30 anos. A discriminação racial é endêmica ao país: os negros têm menos escolaridade. Quando têm a mesma escolaridade, têm salários menores. Quantos negros tinham na sua turma da escola ou da faculdade? Com quantos negros você trabalha? Vidas negras importam. Vidas faveladas importam.

Hoje, o Rio acorda mais triste. Mas.. “O Rio de Janeiro continua lindo. Alô moça da favela, aquele abraço!…”

Para mais informações sobre o ocorrido ontem, acesse as referências abaixo. Recomendo cuidado, as imagens são fortes.

Após a publicação deste texto, houve a confirmação por parte da polícia de mais 3 mortes, totalizando 28. 

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Natassia Nascimento, graduada em Ciências Econômicas pela UFRJ, Mestrado em Economia pela UFF. Atualmente é Doutoranda em Economia pelo Instituto Economia da UFRJ. Tem experiência na área de Economia do Setor Público, com ênfase em Economia dos Programas de Bem-estar Social, atuando principalmente nos seguintes temas: tributação da riqueza, desigualdade, estrutura tributária, imposto sobre a riqueza e distribuição de renda.